Capítulo 1
São quase nove horas da manhã quando uma caminhonete ergue a poeira atravessando laranjais, plantações de algodão e fazendas de gado, vencendo serras e curvas sem conta num cenário que, a todo instante, lembra transcorrer o mês de março: época chuvosa, dias de aguadilhas e pés-d'água, com a estrada repleta de poças e atoleiros, com os rios para além dos seus limites e, nos barrancos, as marcas das enchentes. Nesse instante, porém, o céu está completamente límpido.
Viajantes sobre o lastro de carroças ou puxando mulas estendem o braço em cumprimento ao motorista enquanto as mulheres nos atalhos, com trouxas de roupa na cabeça, ficam olhando curiosas, distraídas de suas tarefas.
Após uma árdua subida em meio a buracos e pedras, a caminhonete pára sobre o mato rasteiro que margeia a estrada. Carlos Brás desliga então o motor, produzindo um súbito silêncio nestes confins do mundo. Ao descer do carro aproveita para se esticar um pouco, pois mesmo ele, com apenas trinta e dois anos de idade e todos os exercícios diários, sente a coluna reclamar após tão longo percurso. Nessa hora vê pousar, a certa distância, um bando de juritis desconfiadas, e passa a escutar ruídos crescentes: a sonoridade da mata nas folhas agitadas e na euforia dos outros pássaros que perturbam a quietude dos arbustos espalhados nos arredores.
Valendo-se de sua estatura, Carlos apoia os braços confortavelmente sobre o capô do automóvel e olha em volta o manto verdejante que, em outros meses, vai dar lugar às coivaras. Fica algum tempo ali observando o que mudou depois das chuvas, reparando o capim crescido nas trilhas que ele conhece como a palma de sua mão.
Minutos depois, através de uma senda, afastando galhos de camará-de-espinho, Carlos avança até um descampado, chegando ao local onde deveria encontrar um acampamento cigano. O que vê, entretanto, são apenas os vestígios da presença dos nômades: encontra restos de fogueiras, cordas e panos.
do ar quente dessa lonjura, Carlos Brás aciona novamente o motor estremecendo o sossego selvagem, assustando as juritis e espalhando a poeira no rastro das rodas. Dirige por uma estrada ainda mais esburacada e tortuosa, repleta de galhos e lama, continuando a busca na qual, entretanto, não terá êxito.
Um tanto longe do lamaçal onde Carlos Brás cata a tribo errante, um aglomerado de pontos brancos fere a harmonia da paisagem esverdeada dos laranjais: ergue-se ali, na margem do volumoso rio Caiçara, Brejo da Carnaubeira, a única cidade da região dos laranjais, de vida própria e independente uma vez que não existem outros grupamentos urbanos nas proximidades, nem mesmo vilarejos, apenas as fazendas e as casas isoladas na beira das estradas lamacentas que partem dali para o resto do mundo. É uma cidade pequena e pacata, de ruas estreitas, casas enfileiradas com bananeiras junto à cerca, uma praça, o jardim e a igreja; o rio Caiçara que corta sua extremidade, mas não ameaça invadir as casas nem mesmo nessas épocas chuvosas; com luz elétrica e outros recursos, posto médico e gabinete dentário, feira e escolas.
Plantações estão distribuídas nos arrabaldes: cana, tomates, flores, assim como também podem ser vistas pequenas barragens e caixas-d’água. Animais passeiam livremente com seus sinos nessas cercanias, num andar manso e intermitente, constituindo, às vezes, o único movimento desse recanto sossegado. Afora as festas locais, Carnaubeira nunca foi um lugar de rebuliços, mesmo nos tempos em que imperavam os desmandos do coronel Floriano Bastos, o seu fundador. Não havia rivalidade alguma, e quando acontecia de alguém levantar voz contrária aos interesses do coronel, providências rápidas e sorrateiras eram tomadas. Contudo, essa vida calma longe de Salvador e de outros centros, onde um boi amuado passava a ser o assunto do dia em todas as esquinas, começou a se alterar quando um novo padre veio ocupar a igreja de Nossa Senhora no centro da praça.Primeiro foi a novidade de sua conduta frente aos fiéis, suas idéias de liberdade, seus ensinamentos sobre uma outra relação com o criador; depois a interpretação dada por ele ao sonho de uma jovem há cerca de cinco anos atrás, durante o advento da folia de reis, afirmando ter havido um milagre e transformando, assim, o cotidiano do lugar; finalmente tudo mudou de vez quando algo terrível aconteceu na primavera do ano passado, nos fins de setembro, abalando as pessoas, atormentando a vida do sacerdote que já caminhava envolta em uma nuvem de dúvidas e acusações. Tudo isso modificou, de maneira implacável, a história de Brejo da Carnaubeira.
O raiar dos dias nessas ruas estreitas, nas paredes brancas dessas casas enfileiradas, no andar sereno dos animais com seus sinos traz uma ideia de paz que é, portanto, absolutamente falsa, apenas uma enganadora sensação de lugar inabalável e tranquilo. Nesses tempos obscuros da história de Carnaubeira, muitas coisas estranhas aconteceram e outras estão por acontecer. Uma pessoa desapareceu nas águas do rio; outras contemplam as chamas para acalmar o espírito e outras tramam no silêncio das noites de Brejo. Predominam inquietações no íntimo dos moradores dessa cidade, que lhes conduziram a um misticismo desenfreado, que provocam insônia, insegurança e, para alguns em especial, o desespero.
Sentada em uma cadeira do consultório médico do posto de Carnaubeira, a senhora Rute Bastos, com seu jeito arrogante e um lenço branco na cabeça, observa o médico enquanto ele realiza algumas anotações. Parece tranquila, não acentuando os sinais precoces de envelhecimento presentes no rosto. A filha, Taís, não exibe o comportamento de uma adolescente que esteja de bem com a vida: silenciosa, olhos fixos no chão, esconde seu rosto infantil envolto pelas tranças do cabelo.
- Ela não deve usar nenhuma medicação - adverte o doutor, retirando os óculos de sua cara gorda, colocando-os sobre a mesa. - por causa da gravidez. Apenas essas aplicações de gelo e calor.
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Tendo recebido das mãos do médico as anotações, Rute Bastos agradece e levanta-se. São extremas a sua altura e austeridade, contrastando com a filha nesses dois aspectos, pois Taís não terá muito a crescer e irradia uma meiguice contagiante.
Olhando para a filha que ainda se mantém imóvel, Rute observa:
- Ainda bem que não foi nada sério.
- Exatamente. – concorda o doutor Benito - Em todo caso aproveite para levá-la a Salvador nesses próximos dias.
Ao ouvir o conselho, Taís ergue a cabeça e olha para o médico, mas retorna tão rapidamente a fixar, contraída, o chão do consultório, que quase não permite a ele visualizar o castanho mel dos seus olhos. Rute Bastos, por sua vez, franze a testa e encara o doutor.
- Ir a Salvador? - estranha ela.
- Sim, ir ao hospital para fazer alguns exames.
- O senhor acha que a queda prejudicou a gravidez?
- Não, claro que não. É apenas para que ela realize os exames de rotina. Além do mais, talvez sua filha deseje ter o filho no hospital e, sendo assim, é importante que ela seja examinada pelo médico que fará o parto.
Rute e Benito entreolham-se durante alguns segundos.
- Se está tudo bem, ela não precisa ir a Salvador! - diz Rute. E completa, em tom de desafio. - Terá o filho aqui mesmo, com Sara!
Um silêncio constrangedor surge no consultório. Diante do ar inconformado do médico, Rute Bastos limita-se a guardar na bolsa as anotações.
- Bom dia! – despede-se Rute, secamente, chamando a filha e seguindo em direção à porta.
Com um olhar mais breve que o anterior, Taís também se despede e segue os passos da mãe.
O doutor continua algum tempo em sua mesa, pensativo, indignado com a decisão da mulher muito embora isso não tenha sido para ele uma novidade, algo inesperado.
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A grande verdade é que Benito já se sente meio cansado a essa altura de seus sessenta anos, de tal modo que faz de tudo para evitar aborrecimentos. Brejo da Carnaubeira surgiu para ele como a oportunidade de viver e trabalhar em um lugar pacato, onde pôde alcançar o sossego almejado depois de tão longo tempo nos hospitais de emergência de Salvador, e encontrou a quietude principalmente porque, além de ser uma cidade do interior, um lugarejo distante de tudo onde os dias eram sempre iguais, teve o cuidado de não se envolver muito com o cotidiano das pessoas, ocupando-se tão somente com o seu trabalho, fazendo-o de forma a ser respeitado por todos.
Mesmo com todo o zelo, foi inevitável para Benito deparar-se com o que ele considera um grave problema em Brejo: Jussara Bastos, ou Sara, como é mais conhecida a parteira da cidade. É verdade que Jussara se esmerou em aprender o ofício, até mais do que se poderia esperar, entretanto, para Benito, toda a cautela e habilidade de uma parteira não podem substituir o trabalho de um médico. A vida das mulheres grávidas e das suas crias é de responsabilidade dele, que cuida da saúde de todos nos quatro cantos dessa terra, de modo que julga desmedida a atuação daquela que socorre as grávidas na agonia da parição. "Que recursos ela pode oferecer?" - pergunta-se - "Que teimosia é essa desse povo?!"
O que faz, no entanto, com que Benito se limite à sua indignação sem tentar forçar a ordem das coisas, apenas manifestando seu inconformismo enquanto segue o trabalho no posto, é a situação especial que gira em torno da parteira. Na cidade e nas cercanias, todos acreditam que uma luz divina brilhou em Jussara, através de um sonho, para que ela começasse a socorrer as parturientes. Naquela época a antiga parteira, Maria das Dores, já não podia dar conta da tarefa porque sofria das artrites e tonteiras da idade, e então, quando o padre Ângelo anunciou o prodígio, todos acreditaram ter sido mesmo um milagre; acataram a certeza de que o sonho de Jussara fora uma revelação; que a filha de Eli e Jandira Bastos havia adquirido um dom celestial. Desse modo, para não ser visto como um herege, um inimigo da igreja, Benito evita o confronto, fazendo apenas a parte que lhe cabe e sugerindo o trabalho de outro profissional quando lhe parece a melhor opção.
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Os argumentos científicos de Benito não teriam mesmo qualquer eficácia contra uma parteira que é tida quase como uma santa. A favor de Jussara, uma mulher jovem e delicada, estão as missas do padre Ângelo; as rezas e romarias; a confiança das gestantes e a intuição que ela própria parece ter adquirido de muitas vezes ir à casa de uma mulher grávida mesmo quando essa não apresentava qualquer sinal de parto, e surpreender a todos logo depois quando iniciavam as dores, terminando por amparar o recém-nascido.
Vez por outra, num estado de desequilíbrio inexplicável, Jussara desaparece no imenso quintal de sua casa e passa ali horas fora de si, quieta num canto qualquer e vendo coisas que não existem. Horas de insanidade durante as quais ninguém pode contar com ela. Um estado de ausência que também fala a seu favor uma vez que todos atribuem esse desvario ao tormento produzido pelo demônio tentando seduzi-la, roubar de Deus a criatura escolhida.
Como se não bastasse a desigual rivalidade com a parteira envolta nesse misticismo, Benito acabou transformado em bandeira para um grupo descontente, para algumas pessoas de uma doutrina distinta daquela que é pregada pelo padre Ângelo: essas famílias, vindas recentemente de um pequeno povoado denominado Pedra do Acalanto, que se acomodaram em Carnaubeira nos terrenos onde funciona o chafariz, levantaram casas e trouxeram para essa cidade aparentemente pacata não apenas uma seita desconhecida, mas também a determinação de anular a crença existente.
“O catolicismo é o mal do mundo!”, proclama o líder da seita. “E minha obrigação é tirar-lhe a máscara!”
A relação que existe entre a igreja de Nossa Senhora no centro da praça e o trabalho de Jussara, supostamente uma bênção dos céus, e sobretudo a influência que isso exerce nos moradores do lugar, instigou, nas casas do chafariz, nas mentes dos mais precipitados, toda ardileza e ousadia necessárias para convencer os moradores de Brejo de que reina um engano. Debilitar a imagem e a reputação da parteira significa, para o povo da seita, jogar na lama as palavras do padre Ângelo, negar o poder de concessão celestial da igreja e lesar a devoção dos seus fiéis. Foi com esse propósito que as damas mais audaciosas do chafariz começaram a paparicar o doutor Benito com artesanatos e frutas diversas ao tempo em que o animavam a devastar, com seus argumentos, as atividades da mulher glorificada.
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O barulho de um automóvel passando próximo à janela desperta Benito de suas divagações e contrariedades. Ele então grita por Rosa Bela, sua auxiliar, para dar continuidade ao trabalho.
Nesse mesmo instante, as pessoas na rua observam a passagem da caminhonete empoeirada de Carlos Brás. Algumas interrompem seus afazeres, outras a jornada a exemplo de Rute e Taís que retomam depois o rumo de casa. Caladas entre si, mãe e filha caminham vagarosas, mergulhadas em pensamentos. Rute Bastos resmunga consigo mesma devido à desconsideração do doutor Benito para com o trabalho da sua sobrinha Jussara, julgando-se ele melhor para cuidar das parturientes ou preferindo que elas se deitem nas maternidades de Salvador, que viajem léguas ao invés de dar a luz aos cuidados de Sara. Não porque Jussara seja sua parenta, filha de sua irmã Jandira, mas pela qualidade divina do seu trabalho. Taís, por sua vez, traz na mente as imagens que faz das grandes cidades com seus arranha-céus, suas avenidas, o movimento de carros e pessoas, as luzes multi-coloridas. São Imagens de um futuro que espera acontecer em sua vida o quanto antes.
Quem custa a se dar por vencido é o moleque Faísca, correndo no meio da rua com seu classificador escolar, comendo poeira, só desistindo da traquinagem quando a caminhonete desaparece na esquina.
O casarão dos Brás fica situado perto da praça, servindo muitas vezes de pousada aos viajantes. A maior parte do tempo, entretanto, permanece vazio, pois Carlos Brás, o herdeiro, costuma estar ausente, entretido na fazenda, nos dissabores que o rio costuma trazer para as suas plantações e rebanhos especialmente em épocas chuvosas como essa.
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Quem cuida do casarão é dona Crispina, uma velha moça, esquisita na sua quase caduquice, mas sempre prestativa. Ao ouvir o barulho do carro, Crispina ganha a sala onde um visitante aguardava ansiosamente a chegada de Carlos Brás.
- Pronto Tio Velho! - avisa ela, mal-humorada. - Brais chegou.
- Ainda bem - responde o visitante, cujo nome verdadeiro é Lauriano Bastos, irmão de Rute e Jandira, tio da parteira.
Contando agora com sessenta e dois anos de idade, pele bronzeada, estatura elevada como é a característica dos Bastos, com seu chapéu acinzentado e o cigarro de palha, Tio Velho veio ao casarão para, mais uma vez, demonstrar sua descrença para com a raça humana. Veio criticar a pasmaceira do prefeito que não resolve nada de útil para a cidade e muito menos para os ribeirinhos das ingazeiras que sofrem agora com as cheias; falar do médico que não valoriza as coisas da natureza e não aceita o trabalho de Jussara, sua sobrinha, que para Tio Velho não foi agraciada por milagre algum, mas que, bem ou mal, escolheu a profissão de parteira e deve ser respeitada por isso. Sobretudo veio mostrar a Carlos, de um modo sigiloso, o que concluiu acerca da agonia que ronda a igreja de Brejo. Viajado como é, ele que passou a maior parte da sua vida em terras distantes, alfaiate em cidades pequenas e capitais, mulherengo e brigão nesses mesmos cantos, aprendeu na vida o suficiente para vir dizer a Carlos que o padre Ângelo não é um louco tal como dizem as pessoas no chafariz, mas apenas um homem comum, com as mesmas aspirações de todos, que tem coisas a conquistar, o dinheiro da igreja nas mãos e que se preocupa em resolver sua própria vida, doa a quem doer.
- Conheço o mundo, Brais! - diz ele - Desde que se instalou o capitalismo, acabaram-se os homens de bem.
Carlos Brás se diverte com os gracejos de Tio Velho. Envereda na conversa, ouvindo os argumentos do caçador de outrora, mas incitando-o a contar suas aventuras, suas brigas, suas bebedeiras, suas muitas mulheres. De modo que a conversa se prolonga e se perde em temas alheios aos problemas de Brejo, deixando de lado a pasmaceira do prefeito e o caráter obscuro de Ângelo.
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Depois da prosa e de um demorado banho frio que o livrou do calor e da poeira da estrada, Carlos Brás deixa o quarto e acomoda-se em uma pequena sala, bastante clara e arejada, com uma mesa no centro, uma cômoda sobre a qual acham-se arandelas com plantas, quadros na parede e um sofá onde ele se deita, vencido pelo cansaço. Reconhece que esperou demais pela atitude do prefeito em relação aos ribeirinhos das ingazeiras, aos habitantes dos moquiços nas margens do baixo Caiçara, admitindo ter se acomodado enquanto esperava pelos fazendeiros daqueles lados do rio no sentido de amparar o povo das choças nas épocas das águas. “O capitalismo acabou com o mundo!”, lhe diz insistentemente Tio Velho em todas as visitas que faz.
Apesar dessas preocupações, do ressentimento para consigo mesmo, Carlos deixa vir o sono que, no início, é leve, instável, interrompido várias vezes pelo barulho da rua. Contudo, logo entranha-se no emaranhado dos sonhos. Neles vê as ingazeiras e os arredores de Brejo; vê o acampamento cigano e assiste à serrabaia.
Professor de história em Carnaubeira, Brás andou hoje em busca do acampamento cigano para dar seguimento à pesquisa que vem fazendo, junto aos seus alunos, sobre a vida de um pintor não muito conhecido, mas que esteve algum tempo na região dos laranjais em seus dias de aventuras e irresponsabilidades, quando negociava cordas e outros produtos até finalmente se aquietar diante das telas.
Foi com sua caminhonete pelas estradas lamacentas até os povoados de Agaí das Lagoas e Açude Menor ansioso por descobrir qual a ligação que existiu entre o pintor e os nômades.
Crispina se ocupa com os preparativos para o almoço, enchendo o casarão com o cheiro de frango assado e o chiado das frituras.
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O sol lá fora é abrasador, tinindo nos telhados. Outros ruídos chegam até a saleta do casarão, de latidos ali, gritos de crianças para outros lados e um martelar ainda mais distante. O ar que vem através da janela aberta é adocicado, brisa de rio. Isso porque o Caiçara corre mesmo muito perto, tanto que se poderia ver, se houvesse janela na outra parede, as pedras e os arvoredos que margeiam seu curso. De onde está, entretanto, caso levantasse a vista, Carlos poderia visualizar apenas as serras que formam o horizonte e as casas que se estendem para esse lado da cidade, um tanto espaçadas, com suas telhas amarelas, descoloridas, chaminés escuras, amplos quintais repletos de mangueiras e outras árvores, roupas e lençóis nos varais. As ruas desse lado mais parecem estradas nuas, dividindo-se depois no mato rasteiro e terminando no emaranhado verde das redondezas.
Já é final da manhã quando a atmosfera tranquila da saleta é bruscamente interrompida. Ouve-se um grito de mulher e passos ligeiros que se aproximam da porta. logo em seguida uma jovem, aflita e ofegante, invade a sala como quem busca refúgio, fechando a porta atrás de si e prostrando-se contra ela. No seu rosto existe alguma expressão de medo que por certo justifica essa correria desatada, mas há também um riso maroto, descarado até, reflexo de alguma pirraça, de alguma traquinagem perigosa.
Imediatamente a jovem se contém tão logo percebe a presença de Carlos Brás que, entretanto, continua adormecido.
- O que foi, meu Deus? – indaga Crispina, falando baixo, vindo alvoroçada da cozinha.
Margô, moça dos seus dezesseis anos, pequena em estatura, rosto arredondado e ressaltado ainda mais pelos cabelos demasiadamente curtos, acha-se envergonhada, enrubescida.
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- Nada não, dona Crispina! Foi o Corcunda que tava passando bem na hora que eu vinha.
- Benza a Deus! E carece de um rompante desse só por causa do Corcunda?
- Ah! - exclama a menina, desconcertada - Foi só um susto.
- Misericórdia! Parece até que é mais tonta do que ele! Ande, de hoje que mandei lhe chamar. Vá preparar um café.
Carlos se move no sofá, despertando, e as duas então se calam, indo sorrateiras para a cozinha. Em seguida ele caminha até a janela e debruça no parapeito. Observa as casas e o movimento da rua, o vai-e-vem das pessoas, cachorros e mulas debaixo do sol escaldante, sob o ar empoeirado. Não tarda a reparar no velho Corcunda, negro doido, de andar manquejante, costas arqueadas, apoiado em uma bengala ao tempo em que as pessoas parecem abrir caminho para ele.
As vozes sussurradas de Crispina e Margô alcançam a saleta.
- Uma correria dessa só por causa do Corcunda! - reclama a velha, em meio aos risos da menina.
- Eu que não ia ficar ali.
- Que desconjuro! Coisa mais besta! O Corcunda não faz mal a ninguém. Basta deixar ele em paz. Aposto que atentou ele.
- Claro que não! Imagina! Porque eu ia mexer com aquele doido varrido?
- Sei não! Você, Margô, não é gente! Um dia desses te jogo na Lagoa-Menina e vai ficar igual a ele.
- Credo, dona Crispina! Eu hem!
- Preferia muito era a tua irmã, Rosa Bela, para me ajudar.
- Belinha tem mais o que fazer.
- Ah! Ande, cadê o coador?
Elas discutem enquanto o velho Corcunda segue com seu passo vagaroso, indiferente a todos os que o cercam, intrigando uns, afugentando outros, causando espanto e surpresa nos moleques que não se arriscam a importuná-lo.
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Nesse momento, observando o cidadão desmiolado que se diz um caçador de diamantes e prestando mais atenção à conversa de Margô e Crispina, Carlos pensa nas coisas próprias de sua cidade, nas histórias de Carnaubeira, nas crenças das pessoas, no misticismo exagerado e no comportamento muitas vezes excêntrico de alguns. Exemplo disso é o seu tio Alaúde Brás, trancafiado na casa das sete janelas sem nunca mais ter saído às ruas. Lembra, sobretudo, do acontecimento de setembro que até mesmo a ele, que não se convenceu de sua veracidade, causou espanto.
Pensando nisso tudo, Carlos diz para si mesmo: "Cá estamos nós na terra dos loucos."
Um carroceiro vai descendo a rua. Ao ouvir o chamado de Carlos Brás, detém o trote da mula e espera.
- Vambora! - diz o professor, subindo no lastro.
O carroceiro agita o chicote e eles se afastam do casarão para desalento de Crispina que se esmerava no preparo do café.
- Agora nem sei se vêm almoçar! - observa, desanimada.
Incontáveis vezes Crispina já ficou da copa para a cozinha, impaciente, gritando para os meninos na rua: “vai, menino!, chamar Brás” .
Enquanto ela requentava a comida, os moleques voltavam ofegantes, um após outro, cada qual com uma história diferente:
- Tava ainda agora conversando na porta da venda.
- Montou num cavalo e foi para a aldeia. - contava um segundo moleque.
- Já saiu da aldeia. - anunciava um terceiro - Entrou na balsa, lá no junco.
- Êta homem sem destino – resmungava Crispina a cada recado que recebia.
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Margô ocupa-se com seus afazeres, sem lamentar a ida de Carlos. As duas não discutem mais, serenando a atmosfera do casarão. Predomina os estalidos de pratos, o chiado das frituras, o sacolejo dos panos de mesa. A velha se põe a beliscar isso e aquilo a fim de aprimorar os temperos e não procura conversa. Margô, por sua vez, continuando com seu trabalho, aceita o silêncio apenas por um breve tempo porque alguma coisa ficou martelando sua mente. As palavras de Crispina evocaram nela uma dúvida antiga, cultivada desde os tempos de menina e que, embora represente um disparate, essa dúvida resiste a todos os argumentos e sempre lhe provoca, impelindo-a a conversar sobre o assunto. Desse modo, sem o ar zombeteiro que envolveu suas respostas às reclamações da velha moça, enche-se de toda a seriedade e dissimulada doçura para interrogá-la.
- Dona Crispina..., é mesmo que tomando banho na Lagoa-Menina a gente pode perder o juízo?
Sem ter para Margô algo que não seja repreenda, afronta, injúria, a mulher trata logo de reconduzi-la às suas obrigações.
- Larga de pensar besteiras e cuida das coisas.
Na Rua Imperador, de acesso à praça, o vendaval da tarde revolve a poeira, empestando o ar fresco que penetra através das portas e janelas, amarelando o interior das casas. Os moleques tentam, em vão, empinar suas pipas em meio às rajadas do vento. Um ou outro sofre a repreensão de sua mãe que o proíbe, apontando para as nuvens pesadas, imaginando ela, desde já, a possibilidade de trovoada.
- Olha o raio menino! – adverte.
Vozes e gritos de crianças brincando ao longe em meio ao bater de portas entreabertas chegam aos ouvidos dos que, sozinhos ou em pequenos grupos, caminham por essa rua, atentos ao badalo dos sinos no campanário da paróquia de Nossa Senhora na extremidade da praça, o ponto mais alto da cidade, de onde se vê toda a exuberância e desmazelas espalhadas por todo lado. Enquanto os sinos tocam, os fiéis procuram se fortalecer em preces.
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Ainda que seja sexta-feira, portanto dia de semana, o templo já está quase inteiramente ocupado como nas missas dos sábados e domingos, com a maioria das pessoas disposta nos bancos enquanto outras estão em pé junto às portas e paredes laterais do salão.
Imponente em sua batina preta, de cabelos levemente grisalhos, mas um rosto jovial que o faz aparentar bem menos do que os quarenta anos que tem, o padre Ângelo encontra-se estático, mantendo uma das mãos apoiada nas páginas abertas do missal, correndo os olhos de uma ponta a outra do templo enquanto aguarda o silêncio absoluto. Ao seu lado direito, Luís, o sacristão, como sempre bem arrumado, cabelo curto e rigorosamente partido, tem o olhar cravado em seu mestre. Os fiéis, por sua vez, cada um com sua bíblia, com um terço ou mesmo um oráculo procuram seus lugares, prontos para a pregação da tarde.
Não se trata de um dia especial, de uma data comemorativa para a igreja e, sendo assim, os devotos não exibem um clima de festa. Muito pelo contrário, compartilham de uma tristeza geral, rezando em benefício de um pescador desaparecido há cerca de dois meses: Antônio Gavião perdeu-se no rio e sua canoa tornou vazia, trazida por outros pescadores, encontrada à deriva em águas distantes perto do povoado de Moenda, girando nas pedras, prestes a sumir no mar.
Apesar da consternação pela morte de Antônio, era de se esperar que os devotos, ajoelhados agora nos bancos enfileirados, demonstrassem alguma paz de espírito uma vez que estão no interior do templo. Independentemente dos obstáculos da vida diária e das preocupações com os filhos errantes pelo mundo, estão na casa de Deus, a maioria trazendo de bom grado o donativo mensal para a construção da maternidade de Jussara, cumprindo com as suas obrigações. Portanto, deveriam estar alegres e esperançosos e não apreensivos como se encontram.
O que contribui para esse estado de espírito é, na verdade, a atitude extremamente séria do sacerdote, a pessoa distante e inacessível que ele se tornou, sua obscuridade e sobretudo o assunto das suas pregações. Ângelo vem insistindo incansavelmente em um tema que acabou com a alegria, esperança e placidez dos devotos de Brejo da Carnaubeira.
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- O satanás quer - principia o padre, inflamado e convicto - ampliar seus domínios de maneira apressada e desesperada porque já lhe foi dado o ultimato. Ele deseja usufruir o máximo possível do néctar da maldade. Todos nós, vez por outra, sob a sua influência, vacilamos e somos maus, porém conhecemos a correção. No entanto, existe algo que não podemos fazer jamais: evocá-lo, convidá-lo a nossa presença. Para esse erro não existe reparo.
Terminada a missa, as pessoas vão lentamente deixando a paróquia. Aflições atenuadas, rancores vencidos, aglomeram-se na escadaria. Ao notar, entretanto, o tempo inteiramente fechado, com nuvens negras e o vendaval açoitando as palmeiras do jardim, são tomadas de uma insegurança súbita. Recorrem logo às preces, às cantilenas religiosas.
A estranheza no comportamento do padre é a causa principal dos tormentos desses moradores, e qualquer adversidade traz inquietação na medida em que a igreja de Nossa Senhora não produz mais a tranquilidade que eles precisam.
Seguem, então, cada um para seu canto, mas levam por conta de tudo isso, das palavras de Ângelo acerca das peripécias do anjo mal, da insegurança quanto à proteção do sacerdote, um pensamento comum. Tanto as beatas fervorosas quanto os calados e taciturnos inevitavelmente relembram um acontecimento recente. Todos são levados a meses atrás, ao episódio que abalou a cidade, que jamais será esquecido, cuja recordação os enche de medo e os faz recorrer aos talismãs.
Sob a ventania que envolve os céus de Brejo da Carnaubeira, todos que deixaram o templo guardam temerosos todas as lembranças da “lua de setembro”.
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